Yunus Emré, em tempos muito antigos, inventou
cantos mais duráveis que a memória de sua própria
vida. foi também um incansável buscador da verdade. Aos
vinte e oito anos aproximadamente, ou talvez mais jovem ainda, veio-lhe
ao coração uma avidez pelo conhecimento que o levou pelos
caminhos do mundo. Ele partiu na esperança de que esta sede de
saber o conduzisse a um mestre que o iluminasse. Esse mestre, foi-lhe
dado encontrar depois de dez anos de errância miserável,
no grande vento de uma colina, em plena estepe da Anatólia. Chamava-se
Taptuk e era cego.
Taptuk
também havia viajado muito, mas por caminhos diferentes dos de
Yunus. Adolescente ainda, raspou sua cabeça e sobrancelhas e
vestindo um gorro de feltro vermelho foi combater invasores mongóis.
Atravessou tantas derrotas quanto efêmeras vitórias. Cavalgou
com o sabre entre os dentes, perseguindo homens tão loucos quanto
ele.
Odiou,
pilhou, matou, cem vezes perdeu e encontrou sua alma no furor dos combates,
até que finalmente o silêncio se abateu sobre sua cabeça.
numa noite de derrota, ele foi deixado como morto num campo de batalho,
à beira de um riacho. Lá, uma mulher, a primeira de sua
existência com exceção de algumas prostitutas de
tavernas, finalmente debruçou-se sobre ele. Ela o recolheu, cuidou
dele até curá-lo. Só não pode devolver-lhe
a visão que lhe tinha sido tomada por um sabre inimigo. Ela então
lhe ofereceu sua vida, sua mão para conduzí-lo. Desse
dia em diante, guiado por sua esposa, Taptuk não sonhava outra
coisa a não ser encontrar nele mesmo um caminho até a
fonte silenciosa de onde se eleva a luz que torna todas as coisas simples.
Uma
noite, nesse deserto seco onde ninguém se aventura, com exceção
de alguns pastores perdidos, ele alcançou a fonte. Lá,
construiu sua casa. Outros buscadores juntaram-se a ele, de tempos em
tempos, levados por não se sabe que vento da alma. Eles reconheceram
neste homem imponente e de poucas palavras o mestre que eles esperavam.
Construíram suas cabanas perto da sua e em volta construíram
uma paliçada.
Quando
yunus Emré chegou a este lugar, o monastério de Taptuk,
o cego, não era mais do que isso: algumas choupanas baixas rodeadas
por um muro de pedras secas na estepe infinita. Taptuk, assim que apalpou
o rosto e os ombros deste andarilho faminto de saber, prometeu-lhe a
verdade.
-
Ela chegará aos poucos – disse-lhe. Por enquanto seu trabalho
será varrer sete vezes por dia o pátio do monastério.
Yunus obedeceu de coração. No instante mesmo em que se
viu diante desse ancião de cabeça raspada, uma confiança
inquebrantável apoderou-se dele. sete vezes por dia varria o
pátio com entusiamo, saudando alegremente o mestre e seus discípulos
quando eles se reuniam na casa da esposa onde Taptuk, o cego, ensinava
todas as manhãs. Mas ninguém respondia as suas saudações.
“Está bem que os discípulos me ignorem, dizia-se,
mas aquele que tão bem me acolheu em sua casa, por que não
me dirige a palavra ? “. Assim se passou um ano, depois dois e
três anos, sem que ninguém falasse com ele. Então,
seu coração tornou-se pesado. “Sem duvida este silêncio
significa alguma coisa, pensou, seguramente meu mestre quer ensinar
algo para minha alma, pois é à alma que se dirige a palavra
sem voz”.
Refletiu
sobre sua solidão miserável, enxotando sete vezes por
dia o pó que o vento trazia sem cessar para o pátio do
monastério. Enfim, numa manhã de primavera, ao sair de
sua cabana, a vassoura nos ombros, uma luz lhe veio. “Descobri
! Taptuk quer ensinar-me a paciência”, se disse ele. Seu
coração encheu-se de júbilo e ele voltou a varrer
o pátio com um ardor renovado.
Cinco
anos se passaram. dois outros escoaram ainda, depois três, depois
cinco novos anos, sem que sua sorte mudasse. Então Yunus desesperou-se.
“Que fiz eu para merecer tão longa indiferença?”
se disse ele. Talvez meu mestre tenha me esquecido. Ou talvez não
seja eu para ele senão um idiota recolhido por piedade, bom apenas
para varrer o pátio. Esforçou-se, no entanto, para refletir
desapaixonadamente. Numa noite de tempestade, veio-lhe ao espírito
que Taptuk talvez quisesse ensinar-lhe a humildade. Em meio a escuridão
atormentada em que se encontrava, ele sorriu. “É isto,
ele quer me ensinar a humildade”. Na manhã seguinte, quando
iniciou o trabalho, seus gestos estavam mais comedidos e, porque seu
coração estava em paz, ele se pôs, enquanto varria
o pátio, a cantarolar. Pouca coisa. Palavras que lhe vinham,
cantos que lhe subiam aos lábios e que ele deixava ir ao vento
pela única satisfação de ouvir voz humana. Entretanto,
sua confiança em Taptuk pouco a pouco o deixou. Este homem, decididamente,
o enganara. Ele não tivera jamais a intenção de
ensinar-lhe o que havia prometido. “Perco minha vida a esperar”,
se disse ele.
Cinco
anos ainda, varreu o pátio cantando, sem que ninguém o
escutasse. Uma noite, cansado dessa miserável existência
e convencido de que ninguém se aperceberia de sua ausência,
decidiu deixar aquele lugar onde, depois de quinze anos de humilde paciência,
não havia encontrado senão amargura e melancolia.
Ele
se foi pela noite, caminhando sempre em frente. Caminhou até
o amanhecer, embriagado de liberdade sem esperança. sentiu fome
e sede mas não havia nenhuma fonte onde saciar-se, nenhum abrigo
onde pudesse refazer as forças neste infinito deserto de ervas
amarelecidas, pedras e vento. “Vou morrer, se disse. Que importa?
Mais vale morrer caminhando do que varrendo o pátio de um louco.”
Andou, pois três dias inteiros. Na noite do terceiro dia, no momento
que ia deitar-se sobre um rochedo para oferecer seu corpo extenuado
aos abutres, percebeu ao longe um acampamento. Surpreendeu-se. Nenhum
viajante viria a essas terras. Quem poderiam ser estas pessoas? Aproximou-se.
Viu homens sentados na entrada de uma grande tenda. Festejavam rindo
e falando alto. Quando o viram, fizeram-lhe sinal e, gritando alegremente,
convidaram-no a compartilhar sua refeição. Frutas deliciosas,
assados apetitosos, bebidas de todas as cores em frascos de vidro estendiam-se
em profusão sobre um tapete de lã. Yunus acercou-se deles,
bebeu, comeu, e finalmente ousou perguntar a essas pessoas por qual
milagre, neste deserto hostil, eles se achavam assim providos de alimentos
tão raros, como jamais ele havia experimentado.
Uma
voz conduziu-nos aqui, disseram-lhe. Com certeza é o melhor lugar
do mundo. Todos os dias o vento traz de longe os cantos de um dervixe
desconhecido. Basta escutá-los e cantá-los que logo aparecem
diante de nós todas essas iguarias suculentas que você
vê. Seríamos loucos se fossemos viver noutro lugar.
Yunus
extasiou-se, confessou que jamais conhecera magia igual e atreveu-se
a perguntar a seus companheiros se eles poderiam ensinar-lhe tais cantos
para que ele não morresse de fome pelo caminho.
-
Com prazer, responderam os homens. E se puseram a cantar. Então
Yunus, com os olhos arregalados e a boca aberta, ouviu os cantos que
ele mesmo inventara durante cinco anos, varrendo o pátio do monastério.
Reconheceu as mesmas palavras que pronunciara com o único desejo
de enganar a solidão. Músicas nascidas em seu coração,
na esperança de espantar a melancolia. Eram a sua obra. No mesmo
instante, compreendeu para qual trabalho ele estava neste mundo, experimentou
a pura verdade de sua alma e sofreu a pior vergonha pensando em Taptuk
que o havia instruído, sem que ele percebesse, como a um filho
infinitamente amado. Então abraçou e beijou os homens
que o haviam acolhido e voltou ao monastério correndo e chorando.
“Taptuk me perdoará por eu ter duvidado dele? se dizia
ele, bebendo o vento. Algum dia ele me perdoará?”
Já
era noite quando chegou à porta carcomida que fechava a paliçada.
Bateu chamando e pedindo piedade. O rosto da esposa de Taptuk apareceu
em cima do muro.
-
Eis que está de volta, Yunus, disse ela docemente. Pobre criança!
Não sei se Taptuk o aceitará de novo entre nós.
Sua partida o desesperou. “Que desgraça, disse-me ele,
meu filho mais querido deixou-me. Que vale a minha vida daqui para a
frente?” Vou abrir. Você vai dormir na poeira do pátio.
Amanhã, quando seu mestre fizer o passeio matinal, vai bater
o pé no seu corpo. Se ele disser: - “quem é este
homem?”, então você deverá partir para sempre.
Mas se disser: “É você meu bom Yunus?”, então
saberá que pode outra vez viver em sua presença. Entre
meu filho.
Yunus
deitou-se na poeira do chão. Ao amanhecer viu aproximar-se Taptuk,
o cego, com sua esposa. Fechou os olhos, sentiu um pé contra
suas costas e ouviu:
- É você meu bom Yunus?
Ele
se levantou inebriado de luz e de felicidade, correu para sua vassoura
e começou novamente a varrer o pátio.
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